‘O jornalismo tem o dever de assumir o partido da democracia’
Malu Delgado
23 de setembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h44)Professor da USP Eugênio Bucci fala ao ‘Nexo’ sobre os aprendizados da imprensa brasileira na cobertura de eleições que envolvem a extrema direita e os desafios da assimetria de poder das big techs na sociedade
Temas
Compartilhe
Jair Bolsonaro fala com a imprensa no Palácio do Planalto, em Brasília
A sinergia do populismo reacionário e das causas autocráticas com as novas tecnologias não surge ao acaso. Na opinião do jornalista Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP (Universidade de São Paulo), o Brasil precisa entrar de forma urgente no debate sobre a regulação das plataformas digitais. “As big techs detêm um grau de informação sobre cada indivíduo que é absurdo, e nenhum indivíduo consegue saber o que se passa dentro das big techs. Essa questão, que é estrutural, afeta sim a democracia”, afirmou Bucci ao Nexo .
Para o professor, que já presidiu a Radiobrás (2003-2007) e passou pelas maiores empresas jornalísticas do país, a assimetria de poder e de capital das big techs nas sociedades contemporâneas as tornou mais determinante para a vida social do que o próprio Estado nacional.
Nesta entrevista ao Nexo , realizada na quarta-feira (21), Eugênio Bucci analisa os desafios impostos à imprensa brasileira na cobertura de um governo de extrema direita, os aprendizados ao longo dos últimos quatro anos e as mudanças na atividade jornalística para lidar com a desinformação. “A desinformação é um ambiente, não um conteúdo”, disse.
Em sua opinião, a cobertura jornalística das eleições de 2018 não explicitou que a candidatura de Jair Bolsonaro não era uma candidatura normal. “Mas agora, em 2022, quando o mesmo candidato que saiu vitorioso em 2018 volta e tenta ser reeleito, a postura crítica da imprensa está mais madura, mais sólida, pelo menos a dos principais veículos.”
É algo muito amplo. Mas a primeira coisa é que a imprensa precisa ter uma linha de atuação de autodefesa. A necessidade de proteger os seus profissionais e de expandir o seu espaço de atuação se tornou uma necessidade dramática porque ficou evidente que tudo aquilo, ou muito daquilo, que se imaginava como garantido não estava garantido. Vivemos um período em que o poder Executivo, desde o seu mais alto posto no país, até seus ministros e apoiadores, assumiu uma ação de ataque contra a imprensa. E a defesa se tornou dramaticamente necessária.
A imprensa, como instituição, precisa aperfeiçoar os seus mecanismos de autodefesa e a sua atuação como uma integrante importante da sociedade civil junto aos mais diversos fóruns em que essa voz se faça importante. Isso passa pela organização das empresas, mas por entidades como Abraji [Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo], Fenaj [Federação Nacional dos Jornalistas], ANJ [Associação Nacional de Jornais].
A imprensa aprendeu, em segundo lugar, a cooperar entre si, e não apenas a competir. Um exemplo disso é o consórcio que verificava os números da pandemia. Esse consórcio mostrou que em função de mais um ato deliberado do governo federal era preciso uma colaboração entre os diversos veículos para que se chegasse aos fatos. O aprendizado de colaboração e não só de competição é um outro aprendizado que fica.
Uma terceira lição é talvez aprender a duvidar mais das autoridades. Por algumas vezes, em algum sentido, nós podemos dizer que a cobertura da Lava Jato tomava as fontes da força-tarefa como sendo fontes desinteressadas, neutras. O início do governo Bolsonaro deixou claro que havia uma inclinação, um certo parti pris por parte de integrantes dessa força-tarefa. Quando apareceram fatos que mostravam uma certa parcialidade, ficou no ar uma lição: aqueles que investigam a corrupção também são poder e devem ser ouvidos e tratados como integrantes do poder, ou seja, com espírito crítico.
Uma quarta lição, e aí não é um caso específico brasileiro, mas ele foi muito grave no Brasil, é a necessidade de combater a desinformação, as fake news. Então as agências de checagem cresceram, iniciativas próprias de algumas empresas jornalísticas surgiram e o tema da desinformação se tornou um tema crítico.
Essas são as quatro lições que eu apontaria. Certamente existem outras. Elas têm em comum essa questão de apontarem para condutas do poder que podem ser abusivas, seja na percepção jornalística, seja naquelas situações em que uma uma colaboração se faz necessária quando surge uma sonegação de dados ou de informação. Vamos encontrar que a conduta de algumas autoridades na Lava Jato era abusiva. O poder interessado pode criar um ambiente de desinformação. Todas essas lições têm em comum que o poder pode ser mais abusivo do que se supõe.
Jair Bolsonaro fala com apoiadores no Palácio da Alvorada
A resposta para isso já aparece, como comentei, na colaboração entre os órgãos de imprensa, na defesa institucional da imprensa, no combate à desinformação.
Neste ponto, um aspecto da cultura jornalística no Brasil que não era tão visível se tornou mais visível. Para certos setores da imprensa, sejam jornalistas individualmente ou sejam veículos, não ficou claro que um governo de traços autoritários e fascistas ameaça a própria ordem democrática. Parece que em alguns casos as pessoas ainda acreditam num ponto equidistante entre o fascismo e a democracia. E isso é um equívoco, é uma ilusão de ótica. Entre o fascismo e a democracia, o jornalismo tem o dever de assumir o partido da democracia. Isso aconteceu nos tempos da ditadura e isso acontece agora, com algumas propostas e condutas que surgem a partir do poder.
Essa ilusão de ótica eu acredito que vá ser desfeita com os próximos lances ainda neste ano eleitoral. As pessoas vão cair em si. Ela [a ilusão de ótica] incide sobre uma certa condescendência com os atos de um governante tão abusivamente autoritário, truculento, preconceituoso, como está fartamente documentado.
Houve em alguns momentos, entre setores dos principais órgãos de imprensa do Brasil, uma dificuldade de caracterizar factualmente o que representava a candidatura que saiu vitoriosa. Não era uma questão de opinião afirmar que o discurso daquela candidatura ficava fora do campo democrático. Isso era uma questão factual, era uma questão de juízo de fato, e não de juízo de valor. Era uma candidatura que defendia a tortura, elogiava torturadores, amaldiçoava a imprensa e fazia uma certa apologia de medidas de censura. E em mais de uma ocasião era um discurso que era um pouco elogioso ou redentor com relação à ditadura militar. Essas declarações são factuais e atentam contra os pilares do pacto que tornou possível a Constituição de 1988 no Brasil, que é a rejeição clara e frontal da ditadura, da censura e da tortura.
Ora, uma candidatura, então, que fala a favor desses três pilares do autoritarismo que nós tivemos no Brasil é uma candidatura que vai contra a Constituição de 88, que é a base da nossa democracia. E talvez a cobertura não tenha explicitado isso devidamente. Não bastava dizer: a Justiça Eleitoral aceitou a candidatura, logo ela é uma candidatura normal. Não era uma candidatura normal. Eu insisti muito nesse período com relação a isso.
Mas agora, em 2022, quando o mesmo candidato que saiu vitorioso em 2018 volta e tenta ser reeleito, a postura crítica da imprensa está mais madura, mais sólida, pelo menos a dos principais veículos. Então existem informações mostrando que há compromissos desta candidatura com causas antidemocráticas. Eu não falo aqui de opinião, eu falo de cobertura factual. E isso em 2022 está melhor.
Os desafios são conhecidos em parte, e são muitos, e graves. Posso falar do desafio de formação de novos jornalistas, posso falar do desafio de competição com relação às big techs que faturam pesadamente em publicidade…
Os desafios estão em alguns campos. O primeiro é uma crise de financiamento ou de modelo de sustentação dessa atividade. Isso não vai ser resolvido sem uma regulação desse setor que proteja a imprensa como uma atividade de interesse público, o que vem sendo discutido no mundo todo. Alguns jornais vêm conseguindo uma escala superior de número de assinantes, e com isso conseguem deslocar o centro de gravidade das suas receitas, mas o problema é maior do que isso. Um dos que vem conseguindo isso é o New York Times, por exemplo. Mas há outros que vêm buscando um modelo em que a receita que vem diretamente do público leitor é a principal. Isso é uma saída, mas é preciso mais do que isso.
Surgem modelos de inovação, como o Nexo, e surgem modelos sem fins lucrativos, como a Agência Pública, aqui no Brasil. Esses são caminhos também, importantes. Acredito que em vários países o jornalismo de emissoras públicas pode ser chamado a voltar a ter mais importância. São modelos novos de financiar atividade jornalística. Então essa é uma questão.
As respostas terão de vir de formas associativas e colaborativas diferentes, sem fins lucrativos, terão de modelos originais muito inovadores, do deslocamento do centro de gravidade das receitas para apoiar mais as empresa jornalísticas com o dinheiro que vem do público diretamente e, por fim, de instituições públicas, como as que são fortes na Alemanha, no Reino Unido, mesmo nos Estados Unidos.
A cultura jornalística e a formação de jornalistas é outro desafio enorme, e nós no Brasil estamos muito atrasados. Teríamos que ter um um padrão de formação, no meu entender, em nível de pós-graduação, que formasse profissionais com mais densidade para enfrentar desafios que tem a ver com a necessidade imperiosa de inovar e de ter soluções originais para problemas antigos.
A tecnologia não foi até agora assimilada e incorporada pelas empresas, pela formação de jornalistas, e pela sociedade. Nós temos que ter um investimento muito maior em tecnologia associado a jornalismo, tanto na cobertura como na distribuição. Um bom exemplo para isso aí é o Washington Post, que desenvolveu inclusive programas e plataformas e faz disso seu negócio. Assim como antes a gente tinha uma convivência entre arte e texto e gráfica, que precisava se aproximar nos jornais impressos, hoje essa aproximação se faz necessária entre design, discurso e tecnologia. A tecnologia precisa morar dentro da redação e a redação precisa morar dentro da tecnologia. Antigamente a arte ficava na parte da gráfica, depois passa a coabitar o mesmo espaço com o pessoal que escrevia. Agora, essa aproximação com a tecnologia não foi bem resolvida ainda, estamos atrasados.
Por fim, aponto uma crise de pensamento. A imprensa precisa saber que ela é uma forma de pensamento. Ela é um discurso que é um pensamento crítico e ela só pode existir se ela for um pensamento crítico. Quando a imprensa renuncia a pensar, o que equivale a renunciar a problematizar, ela perde o seu lugar. A imprensa não existe para apresentar soluções fáceis. A imprensa existe para tensionar a vida social com a exposição de problemas incômodos. Nisso ela se aproxima um pouco da função do intelectual numa sociedade democrática. Boa parte da crise que se abateu sobre a imprensa, por exemplo os escorregões na cobertura de 2018, refletem uma escassez de pensamento.
Acredito que a desinformação é um ambiente. A informação é um conteúdo. Ou a informação pode ser tratada assim. Ela é um conteúdo, ela é até localizável, como por exemplo na teoria matemática da comunicação a informação tem uma unidade essencial que é o bit, o binary digit. Mas a desinformação não é um conteúdo, ela é um ambiente, um ambiente que desestrutura as referências do saber e as relações entre a sociedade e as pessoas, individualmente, com as referências do saber. E instaura um descrédito generalizado. A desinformação tem o seu telos como sendo um estado de coisa em que ninguém acredita em mais nada. E aí todo mundo pode acreditar em qualquer coisa. Aí a opinião fica igual a juízo de fato e um relato factual vale a mesma coisa que uma superstição. É o que nós estamos vivendo.
Isso é uma das dificuldades de falar dessa desinfodemia, porque a desinformação não é um conteúdo. Ela é também um conteúdo, mas a desinformação é uma desordem desinformativa que é um ambiente que desinforma. Porque podemos até ter conteúdo sérios, mas eles se indistinguem das outras coisas. Esse ambiente da desinformação é muito poderoso e muito destrutivo.
A checagem dos fatos sempre foi da essência da atividade jornalística. O jornalista é alguém que checa os fatos. Mas, agora, existe, em escala super industrial, a fabricação da desinformação. Portanto, é preciso uma linha especial de ação dos jornalistas para fazer frente a isso. Acho que o aprendizado disso tudo vai ficar, mesmo que lá para frente comece a haver um refluxo – se a democracia sobreviver – da indústria da desinformação. Alguma coisa disso vai ficar, como ficou, por exemplo, muito da técnica do jornalismo investigativo. O jornalismo investigativo é produto de uma era, entre outras coisas, que teve o incremento tecnológico da reportagem. Se a gente pegar o Philip Meyer [autor do livro “Precision Journalism”, que prega o uso de métodos científicos em apurações jornalísticas, e vencedor do Prêmio Pulitzer], defendendo o uso do computador na investigação para cruzar dados, para trabalhar com uma grande massa de dados, isso incrementou muito o jornalismo investigativo, que encontrou laços cibernéticos para alicerçar certas informações, certas hipóteses depois para documentar e para fazer verificação. Neste sentido, muito do que nós sabemos hoje do jornalismo vem deste aprendizado do jornalismo investigativo, que também tem outras fontes, como o aperfeiçoamento de técnicas de investigação por repórteres. É possível que o aprendizado da checagem fique conosco em definitivo. Mas hoje ela é necessária para fazer frente a uma indústria que cria esse ambiente. Insisto nisso, a desinformação é um ambiente e não é um conteúdo.
Andamos um pouco nessa matéria, mas depois deu uma parada. Essa “lei das fake news”, por exemplo, esse projeto de lei, ele não andou e talvez talvez tenha tido motivos democráticos e justos para não andar. Pode ter tido também lobby, um fator interessado. É uma situação que tem muitos lados. Mas a regulação que conta aí é a regulação de impedir uma concentração assimétrica de poder e de capital das big techs. Elas acabam sendo mais determinantes para a vida social do que o próprio Estado nacional. E isso aí traz um desequilíbrio que precisa ser visto.
A grande questão não é nem os conteúdos que contribuem para o ambiente de desinformação. Isso é grave, precisa ser enfrentado. Mas o problema maior é essa relação assimétrica de concentração de poder e de capital das empresas de tecnologia. Há parâmetros que vêm do início do século 20, que são aqueles balizas da legislação antitruste, para impedir monopólio/oligopólio que podem ser úteis como uma das referências para esse tipo de legislação, mas nós vamos ter que quebrar essa concentração enorme de poder.
Veja que as big techs detêm um grau de informação sobre cada indivíduo que é absurdo e nenhum indivíduo consegue saber o que se passa dentro das big techs. Essa assimetria da informação recíproca, quer dizer, o que um sabe do outro é infinitamente menor que o outro sabe de um, o que o algoritmo sabe da pessoa é muito mais do que o que a pessoa sabe do algoritmo, – e isso tem tudo a ver com a relação de propriedade que amarra a tecnologia – isso terá que ser mudado. Essa questão, que é estrutural, afeta sim a democracia. Isso além de pesquisas que envolvem o neuromarketing, influências psiquiátricas já detectadas, aspectos viciantes das tecnologias, além disso tudo tem essa assimetria que é incompatível com a ordem democrática. Esse é o maior desafio da regulação e ainda vai nos custar algum tempo.
Não. Esse projeto tem uma origem legítima, mas ali começaram a entrar muitas coisas de defesa dos interesses de parlamentares, depois de interesse das empresas, lobby, um monte de coisa misturada, que não andou. É uma iniciativa legítima, mas o centro do problema está nesta hipertrofia da concentração de poder e de capital nessas grandes empresas que desequilibram o jogo do mercado. Mas o que me preocupa muito mais é o desequilíbrio do jogo da democracia. Essas empresas hoje monopolizam o acesso à consciência das pessoas. É um grau de poder como nós não víamos há muito tempo. Existem hoje aplicativos que prestam serviço de terapia. Ou a gente olha isso aí, ou a democracia vai pro ralo mesmo. Não é por acaso que existe essa sinergia entre essas novas tecnologias e causas do fascismo ou dos autocratas, ou do populismo reacionário.
NEWSLETTER GRATUITA
Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia
Gráficos
O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você
Destaques
Navegue por temas